domingo, 15 de agosto de 2010

SONHAR COM A PRÓPRIA MORTE

É possível sonhar com a própria morte?
Obviamente sim. Não deveria existir nada de estranho nisso, da mesma forma como não deveria ter nada de estranho em sonhar de fazer sexo com uma pessoa amiga. Ou também não amiga, mas apenas vista, mesmo que uma única vez. Faz parte daquele delicado desequilibrio que nos mantém em vida.
O equilibrio leva à morte. Uma vez que o Universo parar sua violenta expansão, começada no início do Tempo, o calor não poderá mais transformar-se em energia, em trabalho. Nenhuma reação, nenhum movimento: só uma concreta e presente situação de eternidade e inalterabilidade, que coincide com a morte.
É possível sonhar com a morte, da mesma forma como uma noite você sonha com um casamento. Éros e Thanatos desde sempre estão em conflito e das feridas deles jorra nossa realidade vivente. Uma ferida deles nos deu a história de Romeu e Julieta. Muitas pequenas feridas nos trazem as incontáveis pequenas paixões de dias quaisquer e de gente qualquer.
Quando estou em silêncio sinto o sopro deste desequilibrio.

Me lembrei de como eu sonhei com minha morte...
Estou sentado no assento posterior de um automóvel, voando no asfalto. As árvores são matéria, o ar é matéria que bate na pele, o asfalto pode dilacerar a carne.
Porções de mundo passam debaixo do meu corpo sentado.
Sair da jaula... Voar, voar, rolar, voar... Os anjos nunca foram felizes... Cair e sentir a pele doer... Cair, sangrar... Sinto o meu corpo, eu sou o meu corpo, meu corpo é tudo que eu tenho. Estou feliz, não tenho medo de precipitar, mas é tudo um espetáculo de uma tal extraordinária lentidão...
(13/08/2007)

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Improvisando amor (Capítulo 1)

1.

Stella provava um prazer imenso em perder-se pelas ruazinhas do centro.
Amava desligar o celular, para que ninguém a incomodasse, e dedicar-se à descoberta dos pontos mais característicos e pitorescos da cidade.
Nutria corpo e alma de pequenos prazeres: escolhia cuidadosamente suas leituras nas grandes livrarias, saboreava as especialidades gastronômicas dos lugares mais disparados do planeta, visitava museus e respirava feliz o ar impregnado do cheiro de terra molhada depois da chuva.
Suas excursões urbanas eram sempre uma fonte inesgotável de emoções, cores, cheiros e sabores que se misturavam e proporcionavamam-lhe a maravilhosa sensação de sentir-se viva.
Guardava um diário onde esporadicamente anotava suas impressões sobre os eventos presenciados: o concerto para piano com músicas de Chopin e Beethoven no auditório da igreja de Santa Cecília, a degustação de vinhos de Borgonha no Emporio Grand Vin ou uma exibição de orquídeas raras no bairro da Liberdade.
Escrevia comentários desordenados, ditados pela emoção, ou simples detalhes que amava reler e que lhe traziam uma nova sensação de prazer. Não mais o dos sentidos, que tinha se consumido imediatamente após a experiência, mas aquele fugaz e devaneador da lembrança, que revestia de novo brilho e de saudade a memória do momento vivido.
Estas sensações eram parte integrante do seu dia e não a abandonavam nunca, não importava onde se encontrasse.

– Os contratos que você pediu estão aqui. Não esqueça de devolve-los ainda hoje, ok? – disse uma voz com tom decidido.
As mãos de Mônica acolheram uma pasta transparente cheia de papéis.
– Obrigada, Stella. Só vou dar uma olhada neles.
– Ah, mais uma coisa. Diga para Carla que a espero no corredor ao meio dia.
– Tá bom. Até mais.
– Tchau.
Mônica levantou-se da cadeira, arrumou a saia puxando-a levemente para baixo com a mão e saiu segurando a pasta debaixo do braço, afastando-se ao som dos saltos que se repercutiam no piso do escritório.
Stella estava de novo sozinha. Sentada, apoiou os cotovelos na mesa, segurando o queixo com as palmas das mãos por alguns instantes, pensando no que viria depois.
Com um movimento do busto e fazendo força com as pernas no chão, fez o encosto da cadeira com rodinhas virar, até dar de cara para a parede que até aquele momento estava atrás dela. Levantou o pescoço para cima. Os olhos um pouco cansados pararam exatamente em cima do relógio.
Quase meio dia.
Um nome exótico ressoava na mente de Stella há algumas horas. O Nakato, um dos mais prestigiosos expoentes da gastronomia japonesa em São Paulo, havia aberto uma filial perto do escritório. O restaurante havia recebido elogios em muitas revistas, inclusa a Veja aberta na página da gastronomia em cima da mesa de Stella, que o descrevia como “primoroso por qualidade dos pratos, ambiente e atendimento”.
Se não tivesse que voltar ao trabalho teria tempo de dar uma volta, ver umas vitrines, dar uma olhada nos títulos dos jornais e das revistas nas bancas. Depois, com toda a calma do mundo, poderia saborear as delícias do Nakato. Mas dispunha apenas de uma hora de intervalo para o almoço, antes de voltar à rotina do escritório. Não era muito, portanto tinha que ser rápida e fazer cada minuto valer.
O plano de Stella era simples. Decidiu realizá-lo com a cumplicidade de algumas colegas: Erika e Carla já haviam-se tornado disponíveis desde as primeiras horas da manhã para acompanhá-la naquela missão. Haviam concordado de encontrar-se ao meio dia exato no corredor em frente aos elevadores, na hall do terceiro andar, o da Setrim, a empresa pela qual todas elas trabalhavam. Meio dia era o horário perfeito. Stella calculava que demorariam não mais que dez minutos para percorrer as quadras que as separavam do restaurante. Possivelmente naquela hora ainda não estaria lotado. Um plano perfeitamente engenhado.
Stella lançou novamente um olhar para a revista na mesa. O restaurante ainda estava ali, apelando aos seus sentidos através das fotos convidativas que exibiam suas coloridas especialidades.
Sentiu as mordidas da fome materializar-se no estômago.
Só mais alguns minutos...
Com um som irritante o telefone em cima da escrivaninha rompeu o silêncio da sala.
Stella sentiu que algum problema estava se aproximando, como quem olha para o céu, vê nuvens escuras e já consegue farejar cheiro de chuva.
Levantou o receiver com um certo nervosismo que fez-lhe tremer a mão. O led vermelho mostrava que se tratava de uma chamada interna.
– Alô?
Reconheceu de imediato a voz da jovem secretária.
– Stella, o Sr. Daniel mandou avisar que haverá uma reunião no escritório dele daqui a cinco minutos.
– Merda! – foi o que imediatamente pensou, mas o pensamento não teve força suficiente para transformar-se em som.
Sabia que não adiantaria reclamar. Pelo menos não com ela.
Pela segunda vez naquela semana teria que renunciar à pausa do almoço. Já na terça o encontro com os clientes da Frelta, uma empresa que cuidava da distribuição dos produtos em algumas redes de supermercados, tinha se esticado além do horário previsto, inviabilizando o almoço. Culpados, sem absolvição, e portanto condenados a queimar para sempre no inferno, os próprios clientes, chegados com uma imperdoável meia hora de atraso.
Naquela ocasião Stella havia ficado no escritório sem interrupção, com o único resultado de ser elogiada pelo chefe por ter conseguido uma boa venda, algo que não bastava a consolá-la.
Agora estava quase na hora de comer, o estômago começava a dar sinais eloqüentes. Não podia renunciar àquele momento de prazer tão cobiçado que já estava se tornando uma necessidade inadiável. Não podia deixar de conhecer o Nakato.
Com um suspiro resignado desligou o telefone. Ficou um segundo como perdida, o olhar fixo contra a parede, sem saber o que fazer. Depois com mão firme e rápida apanhou de novo o receiver e compôs um número.
– Daniel?
– Sim.
– Eu tenho um compromisso para o almoço. Essa reunião é mesmo necessária ou é mais uma perda de tempo?
Nada havia filtrado seu pensamento ao tornar-se palavras. Sabia como chegar direto ao que interessava, sem titubear. Mesmo que estivesse dirigindo–se a um superior, o tom da sua voz não concedia descontos.
– Stella. Preciso de um relatório detalhado sobre os nossos clientes da Frelta. Os contratos estão todos contigo, portanto sua presença é indispensável. Se quiser, podemos almoçar juntos amanhã... – ele jogou isso na inocente tentativa de consertar o dano que tinha acabado de provocar.
A voz de Daniel era uma das poucas coisas que tinha o poder de trazer Stella bruscamente de volta à embaraçosa imperfeição da realidade. E irritá-la, fazendo-a sentir ainda pior.
Um homem como Daniel poderia viver até duzentos anos de idade e nunca conseguiria entender nada da psicologia feminina.
– Obrigada, deixa pra lá – ela até tentou imaginar como seria ter que gastar seu precioso break conversando sobre clientes e contratos com ele e a idéia pareceu-lhe ainda mais aterrorizante, se é que isso era possível.
A reunião. Algo sobre a inutilidade da qual estava tão convencida ao ponto de apostar um mês de salário. Mas o chefe não estava convidando, estava "gentilmente" ordenando.
– É isso que se ganha por ser supervisora do setor de vendas de uma multinacional. Eu mereço isso – pensou.
Em poucos instantes havia visto seu castelo de areia construído com tanto cuidado desabar sob os pés de um imbecil.
Não tinha saída. Freou seus desejos bruscamente como quem dirige um carro em alta velocidade e percebe que, estrada adiante o farol está fechado.
– Tá bom, te vejo no teu escritório – acrescentou mecanicamente e sem muito sentimento.
Tinham acabado de violar sua vontade e matado seu desejo. Sentiu-se agredida com violência.
Num segundo cessou de fantasiar sobre a possível decoração do restaurante, sobre quais tipos de porcelanas, lisas ou ásperas, à segunda da comida servida teria encontrado, sobre as variedades de sushi e sashimi, cada um com seu nome característico, que teria degustado naquele local. Estes e muitos outros detalhes foram removidos com a mesma rapidez com a qual se apaga um arquivo de um disco rígido num computador para criar espaço.
Tentou afastar o pensamento.
– Pelo menos não terei que agüentar as intermináveis reclamações de Carla – pensou sorrindo. A amiga estava perenemente no pé de guerra contra os superiores que, queixava-se ela, a constringiam a horários desumanos e tarefas impossíveis por um salário de fome. Tinha uma boa dose de verdade nisso.
Apanhou a pasta de couro preta com todos os fascículos dos clientes, a inseparável bolsa que continha agenda e celular, enfiou uma mão dentro dela e a retirou segurando um kit de maquiagem que abriu-se rapidamente revelando um pequeno espelho. Em poucos instantes sua face apareceu na pequena superfície de vidro do estojo em plástico.
Os cabelos castanho escuro desciam retos em forma de franja na testa e atrás corriam soltos passando abundantemente da altura dos ombros, incrivelmente lisos. Dois olhos escuros e penetrantes que brilhavam de um olhar doce e ao mesmo tempo resolvido deixavam transparecer curiosidade e inteligência. O nariz regular e reto e a boca grande com lábios finíssimos inseriam-se harmoniosamente no rosto magro, completando a imagem de um rosto que poderia ter sido pintado por um artista em estado de graça.
Arrumou rapidamente a franja com um gesto da mão, pensou por um segundo se era o caso de reforçar o traço de batom nos lábios, já velho de algumas horas. Não o considerou necessário. Afinal era só uma reunião de trabalho.
Repôs o espelho na bolsa, suspirou, levantou-se cuidando bem de arrumar a cadeira perto da escrivaninha e dirigiu-se à porta. Por um momento teve a sensação de que o mundo em sua volta de repente estivesse tornando-se escuro. Parou. Sentiu esta escuridão cair em cima dela e envolvê-la como uma manta negra espessa e sufocante.
Suspirou novamente, fechando os olhos como se não enxergar aquelas paredes, aquele escritório sem vida bastasse para transportá-la num outro lugar, onde as coisas tinham mais cor e luz. Quando os abriu percebeu que aquele lugar existia apenas em sua imaginação. Havia só o escritório.
Sentiu a vontade de gritar subir do fundo do estômago. Um grito que ansiava sair, ecoar naquele ar viciado, retumbar nos corredores cheios de marionetes e zumbis e mais além daquele escritório, fora daquele prédio, alcançar todos os espíritos livres, sacudir e libertar todas as vítimas de uma existência enfadonha sacrificada em prol do dever, imolada ao deus do trabalho. De instinto levou uma mão á boca, como para impedir que seu descontentamento se manifestasse sonoramente e reprimiu num instante a legião de demônios enfurecida que se agitava no estômago. Como já havia feito uma, duas, muitas vezes.
Aviou-se. Acelerou o passo, abriu a porta e encontrou o corredor que ressoava barulhento das conversas dos colegas. Com um rápido gesto da mão fechou a porta atrás dela e com a mente afastou no mesmo momento mil pensamentos negativos, mil nuvens negras do seu céu. Sentiu que estava voltando o sereno.
Deglutiu. O grito dissolveu-se silenciosamente nela, rápido como tinha surgido. A quiete voltou a reinar dentro.
Em breve a reunião começaria. E ela estaria lá.
Lançou uma última olhada à sua volta, encontrando os rostos familiares dos colegas de trabalho. Nem o esboço de um sorriso.
Parou para tomar um copo de água do bebedouro no corredor. Tomou coragem e misturou-se com aquela porção de humanidade que entrava no escritório de Daniel.
Não era aquele o lugar e o momento para deixar sua alma sangrar.

domingo, 13 de junho de 2010

INESQUECÍVEL

"Em um minuto se vive uma vida", é o que Al Pacino diz em "Perfume de mulher", na celebérrima cena do tango.
É também verdade que "em uma vida se vivem tantos minutos". Alguns inesquecíveis.
São quase duas horas da madrugada e estou aqui, digitando e pensando em quão sortudo e privilegiado eu sou, na minha condição de mero ser humano, por experimentar tamanhas emoções e poder vivenciar momentos assim.
"Laphroaig" é o nome de uma área na Escócia, no sul da costa da ilha de Islay e também o nome de um uísque ali produzido, por ser um pouco mais exatos, um dos mais saborosos uísques que existem. Quem já experimentou com certeza concordará comigo; quem não conhece pode esquecer os vários Johnnie Walkers e Ballantines da vida:não servem como referência.
Quero frisar que nunca gostei de uísque. Sou apaixonado por vinhos e tomo cerveja (muito ocasionalmente) com os amigos, curto cervejas especiais (também muito raramente) e só.
Tudo aconteceu um par de anos atrás, quando em visita à Itália,convidado pra jantar na casa de um daqueles poucos AMIGOS (o maiúsculo aqui é obrigatório) que a vida nos reserva, foi introduzido a este "rapazinho" escocês de 10 anos de idade.E foi um daqueles amores que a gente carrega para a vida inteira.
Agora, dois anos e alguma coisa mais tarde estou aqui, refletindo sobre mais uma noite maravilhosa, com pessoas queridíssimas, em que a boa música, o álcool e a boa conversa protagonizaram as tardas horas de uma fria noite de inverno paulistana.
O Laphroaig foi apenas o toque final de uma noite regada a álcool e repleta de prazer. Não aquele sensual e carnal do sexo (ao qual também me concedo com frequência, graças à Deus!), mas o prazer do espírito, junção de carne e intelecto, corpo e alma.
O prazer de conversar e aprender ouvindo Chopin, Mussorsgky e Debussy com um músico da Sinfônica de Sâo Paulo e com o pai da mulher que amo, mulher que há um bom tempo divide sua vida comigo. Ótima companhia.
Me encontro num estado de euforia e excitação (devido ao álcool?). Percebo que agora como nunca antes consigo compreender perfeitamente o slogan que se encontra no site do Laphroaig:- "Dizem que nós moradores da ilha demoramos um bom tempo para fazer novos amigos, mas quando o fazemos é para a vida inteira".
Só posso concordar.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Castello Banfi Rosso di Montalcino 2006




Agora que o calor está deixando espaço ao primeiro frio torna-se possível e bastante agradável saborear um bom tinto. Este Castello Banfi descansava junto com outros conterrâneos há mais ou menos dois anos, lembrança de uma viagem na minha terra natal, na minha amada Firenze. Devo admitr que tenho a tendência a considerar alguns vinho "especiais", um pouco por preguiça e um pouco pelas lembranças que me trazem, de forma que fica difícil tirá-los da prateleira. É preciso uma ocasião especial.
Sexta-feira voltei a falar com um grande amigo ficado afastado numa daquelas temporadas de ausência que por vezes a vida impõe e sobre as quais não temos controle. Pouco importa. Quando os sentimentos são verdadeiros, podemos ficar distantes o tempo que for, a amizade continua intacta da mesma forma como foi deixada.
- Passa em casa hoje à noite, vamos tomar um vinho - digo eu.
- Ok - responde ele.
Quer ocasião melhor?
Assim que ele chegar abro a garrafa, meio apressadamente e em cima da hora, contrariamente aos meus hábitos (sempre deixo o vinho "arear" pelo menos uma meia hora). Deu certo.
Este vinho pode ser considerado o irmão menor do mais famoso Brunello, um dos mais conhecidos vinhos italianos. Os dois são produzidos a partir de uvas Sangiovese grosso. O rosso é envelhecido por 12 meses em carvalho e outros 6 meses em garrafa antes de ver as prateleiras das lojas. É considerado um vinho mais "fácil" que o Brunello e que pode ser tomado "jovem", à diferênça do irmão maior que dá o melhor de si depois de anos ou décadas de guarda.
Tomo cuidado em não estragar a rolha que dá sinais de querer partir ao meio. Missão cumprida, decanto e já está na hora de servir.
O Castello Banfi è de um vermelho rubi muito escuro, cor que normalmente me dá uma indicação sobre a consistência do vinho e me deixa tranquilo; com seus reflexos roxos, fica bonito no copo.
Ao nariz não excele (também não o deixei respirar muito), não é uma "bomba de frutas" argentina ou chilena, mas são evidentes as notas de ameixa e cereja e um leve toque de baunilha, que em momento algum se sobrepõe ao bouquet.
Na boca ele tem um ataque firme, taninos sedosos, boa concentração, elegância e firmeza ao mesmo tempo. Ótimo retrogosto e final longo e agradável.
Não evoluiu muito, até porque os 750 ml evaporaram muito rapidamente, mas deixou todo mundo satisfeito e pessoalmente fiquei com vontade de ter mais umas garrafas deste Rosso pra continuar a agradável conversa, num fundo musical de grandes vozes líricas (Maria Callas, Beniamino Gigli).
Enfim, fui dormir feliz, um pouco pelo vinho e muito pela reaproximação do meu grande amigo Enio.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Jazz. Onde?

Que o jazz seja uma arte menor não há a menor dúvida. É suficiente ir à um megastore tipo Saraiva ou Fnac para dar-se conta da limitadíssima quantidade de títulos de jazz disponíveis.
É verdade que a indústria discográfica está vivendo um momento de crise, especialmente por causa da música digital facilmente acessível via internet. Se isso vale para o pop e o rock,que sempre dominaram as vendas, quanto mais triste a situação para o nosso caro bom e velho jazz, que sempre contou com um restrito número de poucos (mas bons) aficionados.
Se excluirmos as re-edições, remasterizações e reprensagens de clássicos (será que alguém sentia a necessidade de uma enésima versão de "Kind Of Blue", com camiseta de brinde??), se tentarmos ir um pouco além dos mesmos nomes de sempre (Miles, Trane, Parker, Ellington, etc.) e fora o jazz-pop comercial das várias cantoras estilo Norah Jones, surge inevitável a pergunta: "onde está o jazz hoje? Será que ele morreu mesmo?"
A triste realidade é que hoje, para um músico de jazz, é muito difícil achar uma gravadora que invista nele bancando todos os custos. Jazz não dá lucro. Tanto que, como escrevi na resenha do cd "The End Of A Love Affair", existem nos EUA músicos que para poder lançar seus projetos se veem obrigados a gravar por etiquetas estrangeiras independentes, muitas vezes japonesas ou europeias.
A Blue Note, desde sempre a principal gravadora de jazz, tem um acervo invejável, mas a maior parte dele é ocupada pelas re-edições do período de ouro (anos '50 e '60), o mesmo diga-se da Verve, e pior ainda a Columbia, hoje Sony, cujo catálogo jazz sempre foi bem mais limitado. Um discurso particular merece a ECM de Manfred Eicher, desde sempre dedicada a um jazz mais intimista e voltado para o mundo, cujo catálogo oferece uma escolha boa e diversificada.
Apesar disso, o jazz continua bem vivo, e é "ao vivo", especialmente nos locais das cidades americanas, mas também do resto do mundo, que os jazzistas fazem a música brilhar. E graças a Deus existem incontáveis pequenas gravadoras, quase sempre de propriedade de apaixonados, que se encarregam de impedir que esta forma de arte exale o último respiro.
E é justamente no catálogo de gravadoras como Palmetto, High Note, Concord, Criss Cross, Savant, Venus, Red Records e outras que é possível encontrar o jazz de hoje gravado por mestres veteranos desconhecidos ao grande público (Harold Mabern é um exemplo) ou novos nomes como Ted Nash ou Avishai Cohen.
É só procurar. Existe um mundo de jazz além de "Kind Of Blue" e "A Love Supreme" que quer e precisa ser descoberto e valorizado.
Boas audições à todos!

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

One For All - The End Of A Love Affair



Era uma vez Art Blakey e os Jazz Messengers...
Pois é. Escutando este cd, desde as primeiras notas tive a impressão de estar ouvindo um dos clássicos "Blue Note" anos '60 do saudoso baterista. De fato, o som é típico hard-bop e o formato, sexteto (trombone-sax tenor-trompete- piano-baixo e bateria), remete muito à formação do Messengers com Curtis Fuller, Freddie Hubbard e Wayne Shorter.
Nada de particularmente inovador portanto, mas bom e velho jazz como se tocava no período de ouro desta genuína forma de arte afro-americana. Música de qualidade, tocada por um sexteto muito competente.
O trombone em questão é o do Steve Davis, um passado não muito distante em uma das últimas versões dos Messengers, aqui no papel de porta-bandeira virtual dos Messengers de Buhaina.
O sax tenor é Eric Alexander, em anos recentes já aclamado pela crítica e autor de ótimos projetos como solista. O som dele por vezes lembra o do Trane, digamos fim anos '50, período Prestige. Articulado,moderno, como deve ser.
O timbre e o fraseado de Jim Rotondi, trompete, me lembraram muito Freddie Hubbard, um nome de qualidade quando se trata de trompete hard-bop.
David Hazeltine proporciona um acompanhamento de classe ao piano (interessantes as gravações dele em trio, também pela Venus) e contribui ao programa do disco com uma composição própria, "How Are You", construída sobre ritmos cubanos.
Completam impecavelmente a "cozinha" Peter Washington no contrabaixo e Joe Farnsworth atrás dos tambores.
No repertório além de composiçõs originais, alguns clássicos como "Skylark", e uma agradável surpresa, "Corcovado" de Tom Jobim, escolha que foge um pouco do repertório típico deste estilo. Pelo que me diz respeito, não lembro de alguma gravação de bossa nova por parte dos Messengers, que sem dúvida representam um sólido ponto de referência para o sexteto.
Curiosamente "One For All" é um super-grupo que grava em New York pelo Venus, um selo japonês, sinal evidente de quão difícil seja para os músicos de jazz, em tempos de crise da indústria discográfica, encontrar uma gravadora disposta a acreditar e investir neste tipo de projeto.
E os nipônicos conseguem realizar um trabalho em grande estilo, como nós, apaixonados, adoramos. Gravação "audiófila" em 24 bits com o sistema chamado Hyper Magnum Sound, um processo de masterização usado apenas pela Venus, arte gráfica cativante (as capas desta gravadora exibem lindas fotos de modelos em trajes provocantes, nada mal!) por um projeto musical muito bom que prova mais uma vez que o jazz ainda goza de boa saúde. Graças a Deus!