sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Peter Gabriel -"So"


Desde a foto na capa é evidente a vontade do artista de se expor em primeira pessoa, sem uso de máscaras, camuflagens ou imagens distorcidas. A foto, simples e limpa sobre o fundo branco, que mostra o rosto de Peter Gabriel ao natural, livre de artefatos ou máscaras angustiantes, contrasta fortemente com as dos álbuns anteriores: parece transmitir serenidade e convidar a descobrir o "verdadeiro eu" do artista.
Excluindo a trilha sonora de "Birdy" de 1984, já se passaram 4 anos desde "Security", o último trabalho do ex vocalista do Genesis, álbum caracterizado pelo uso pesado de sintetizadores e drum machines.
Estamos em 1986 e muitas coisas aconteceram no percurso artístico de Peter Gabriel. Em primeiro lugar o encontro com o fascinante patrimônio musical africano. Este é o fator que mais influencia as composições de "So". Começando pela escolha dos músicos e da instrumentação: na bateria e nas percussões se destaca o jovem Manu Katche, francês de origem norte-africana que introduz o uso dos "talking drums". Estes tambores, assim chamados porque imitam os sons da lingua africana, permitem criar uma variedade de tons apenas apertando ou liberando as cordas no tambor enquanto estiver tocando. No baixo Tony Levin é garantia de que a música tenha sólidos alicerces; uma seção de sopros comandada por Wayne Jackson do lendário Memphis Horns provê amplo respiro para as composições; David Rhodes, com Gabriel desde 1980, continua no violão; piano, violino, sintetizador, percussões de todo tipo (surdo, pandeiro, congas, triângulo) e backing vocals ampliam o leque de possibilidades sonoras exploráveis e oferecem ao ouvinte uma amalgama de sons variados e sempre interessantes.
O álbum começa com a esplêndida "Red Rain", inspirada por um sonho recorrente de Gabriel: um pesadelo de mares tempestuosos que se transformam em uma chuva devastante e liberatória. Segundo o autor, a chuva vermelha representa todos aqueles sentimentos e pensamentos reprimidos do ser humano que mais cedo ou mais tarde voltam à tona. A voz de Gabriel flutua sobre o baixo hipnótico de Levin, o piano imponente tocado pelo próprio Gabriel e a bateria de Jerry Marotta, para conduzir a um final só voz e piano muito intimista.
"Sledgehammer" é a faixa mais famosa do disco, responsável pelo enorme sucesso comercial de "So". Com a seção de sopros em destaque, um beat irresistível e uma letra claramente alusiva, nas intenções de Gabriel devia ser uma homenagem a certa música soul dos anos '70, de gravadoras como Atlantic e Stax, que ele curtiu muito durante sua adolescência.
"Don't give up", em duo com Kate Bush, intimista e melancólica, é uma canção que traz uma mensagem positiva: nunca desista da vida, mesmo nos momentos mais tristes. Interessante que Elton John declarou que ouvir esta música o ajudou a sair da depressão e largar definitivamente o vício das drogas.
O lado A (porque é de vinil que estamos falando) se conclui com "That voice again", nada de especial, talvez o ponto mais fraco do álbum do ponto de vista compositivo.
A segunda parte do disco começa com a belíssima "In your eyes", onde piano e guitarra realmente grudam no ouvido durante o chorus. A forte base percussiva e a participação vocal de Youssou N' Dour dão um tom de world music a esta composição. "In your eyes" consegue transmitir uma força emotiva extraordinária.
"Mercy street" é outra música bem introspectiva que conta a história de Anne Sexton, uma mulher que, internada por distúrbios mentais, resolveu escrever um livro de poemas e depois de quatro tentativas de suicídio falidas, conseguiu pôr um trágico fim a própria vida angustiada. Provavelmente a música mais sombria do álbum, mas ao mesmo tempo altamente evocativa e de rara beleza.
"Big time" segue musicalmente um pouco na onda de "Sledgehammer", embora não tão contagiante, com uma guitarra funky no lugar dos sopros, os teclados em evidência e Stewart Copeland atrás dos tambores. É uma visão sarcástica sobre a necessidade humana de alcançar o sucesso a qualquer custo.
"We do what we are told", composição muitas vezes executada ao vivo e já conhecida pelos fãs de Peter Gabriel, é aqui finalmente gravada de forma oficial, com sonoridades que lembram o King Crimson de Robert Fripp e certo tipo de música que Bjork gravaria uma década mais tarde.
A última faixa, que curiosamente não é mencionada na track list da back cover do disco, "Excellent birds", é uma boa canção escrita em colaboração com Laurie Anderson.
Para os puristas e os amantes das definições e dos rótulos "So" resulta um disco de difícil colocação, enquanto muito distante das atmosferas prog-rock do Genesis, e não exatamente aquilo que se espera de um disco de pop ou de rock.
Para os amantes da música em geral, "So" é um álbum essencial, rico de sonoridades interessantes que conseguem ir além da época em que foi gravado, aqueles anos '80 muitas vezes alvo de duras críticas. A música nele contida é de fácil acesso e representa o ponto mais alto da carreira de Peter Gabriel.
Á produção de Daniel Lanois é ótima e o vinil tem um som espetacular. O disco, que vendeu milhões de cópias, se encontra facilmente na edição original de 1986 pela Virgin e também na re-edição atual em 180g pela Real World Productions.

quinta-feira, 27 de julho de 2017

The thin red line (Além da linha vermelha) Resenha


Desde as primeiras cenas a narrativa do filme me lembrou muito do "The tree of life", com a voz fora de campo fazendo perguntas retóricas sobre a vida, a morte e tudo que há no meio. De fato, sem que eu soubesse, Terrence Malick é o diretor de ambos os filmes.
Detestei "The tree of life", de 2011. Achei muito pretensioso e sem rumo, embora a fotografia dele seja fenomenal mesmo, beirando níveis de referência absoluta como "Baraka" (só para dar um exemplo).
Mas gostei muito de "The thin red line".
Em 2 horas e 45 minutos este filme de 1998 desenvolve o drama da guerra através da voz dos protagonistas: um grupo de soldados americanos empenhados na sangrenta batalha de Guadalcanal na segunda guerra mundial.
O filme consegue, até melhor que "Saving private Ryan", capturar o desespero, a loucura, a angustia, a dor, e todos os outros sentimentos, quer ditos quer tácitos, dos envolvidos no conflito. Nas entrelinhas "The thin red line" fala mais alto que "Saving private Ryan", que continua sendo meu filme de referência no quesito "filmes de guerra".
É um páreo duro: a fotografia, a qualidade de imagem e as cenas de ação são incríveis em ambos os filmes, com uma levíssima vantagem para "Private Ryan" (a cena da batalha na praia da Normandia continua inalcançada até hoje).
Por outro lado, "The thin red line" oferece mais pontos para reflexão, com personagens mais marcantes, entre os quais Sean Penn, Jim Caviezel, John Cusack, Nick Nolte, Adrien Brody.
Se não houvesse a voz fora de campo com suas perguntas retóricas ("por que nos tornamos assim?", "quem nos separou?", "de onde vem o mal?",etc.) e o lance de "after life", que francamente achei em excesso e pelo visto é característica marcante do diretor, arriscaria colocá-lo no topo. Infelizmente precisa contentar-se com o segundo lugar, junto com "Hacksaw Ridge".
Mesmo assim o filme contém uma poderosa mensagem sobre a inutilidade e os horrores da guerra. Um retrato fiel da alma humana, com suas virtudes e sua podridão.
Vale muuuito a pena assistir!