"Coisas para se fazer em Denver quando você está morto" não obteve muito sucesso na época de seu lançamento em 1995, cúmplice um pouco a "febre" por Tarantino, que com "Pulp fiction" em 1994 havia revolucionado o modo de fazer cinema, e que praticamente monopolizava o interesse de público e crítica naqueles anos.
Contudo, esse filme de Gary Fleder ("Refém do silêncio", "O Juri"), que passou despercebido, merece ser assistido e avaliado positivamente por vários motivos.
Primeiro pela trama.
Jimmy "o Santo" é um empresário interpretado magnificamente por Andy Garcia, talvez no melhor papel da carreira, junto com o de "Internal affairs" ("Justiça cega"), onde divide a tela com Richard Gere.
Os negócios (bastante peculiares) não estão indo bem para Jimmy, embora ele disfarce exibindo um corte de cabelo impecável, esbanje sorrisos e otimismo irresistíveis no rosto e use ternos elegantes. Contudo ele mantém em vida o sonho de poder, um dia, comprar uma lancha e mudar-se para longe de Denver.
Embora hoje ele tente sobreviver honestamente, guarda na gaveta um passado como gangster de todo respeito (o apelido "Santo" vem dele ter frequentado o seminário quando jovem, até perder a vocação e entrar no mundo do crime).
Para salvar sua empresa, endividada até o pescoço, ele se vê obrigado a aceitar executar um "trabalho", na verdade uma "coisinha simples", para o chefão do crime local. Poderia agir sozinho, mas prefere convocar os companheiros dos velhos tempos, que também financeiramente não navegam em boas águas. No meio da operação um imprevisto acontece, a situação precipita e Jimmy, terá que repensar na sua vida e correr atrás do prejuízo. Sentindo-se responsável, tentará salvar o que for possível e consertar os erros cometidos.
O elenco inclui, além da grande atuação de Andy Garcia, que literalmente dá vida a um personagem melancólico, mas ao mesmo tempo provido de bom coração e cheio de alegria (e é impossível não gostar dele!), um notável Christopher Warden, que interpreta o chefão mafioso paraplégico, o tempo todo em uma cadeira de rodas. Um personagem azedo e cínico, amargurado pela vida, que parece ter sido muito má com ele: além da enfermidade, teve que passar pelo falecimento da esposa amada e hoje, o único laço familiar que sobrou-lhe, é o do filho, um garotão seriamente retardado, que vive arrumando-lhe problemas. Da sua mansão,onde ele vive constantemente assistido por uma enfermeira supersexy e cercado pelos seus capangas, ele controla os negócios criminosos.
Gabrielle Anwar (a atriz que dança o tango na famosíssima cena com Al Pacino em "Perfume de mulher") esbanja juventude e sensualidade ao interpretar Dagney, a linda jovem que conquista o coração de Jimmy. A química entre Gabrielle e Andy é muito boa, o casal protagoniza algumas cenas memoráveis.
Todos os personagens são bem construídos, ao ponto de alguns parecerem personagens de quadrinhos, com características peculiares mas não estereotipados. O diretor desenvolve com grande habilidade o psicológico deles.
"Critical" Bill (Treat Williams), um dos parceiros de Jimmy, é um brutamonte violento e asqueroso com sérios distúrbios mentais que treina boxe batendo em cadáveres; Olden (Christopher Lloyd, o "Doc" de "De volta ao futuro", o mais idoso da turma, ganha a vida projetando filmes em um cinema pornô; Lucinda (Fairuza Balk) é uma jovem prostituta que sonha em um dia ter um filho com Jimmy e vive pedindo dinheiro emprestado; Steve Buscemi é perfeito como killer silencioso e frio, a morte personificada, uma figura dificilmente esquecível, mesmo tendo importância marginal no contexto da história.
É muito interessante assistir à luta que os personagens terão que travar para arcarem com as consequências das próprias ações e que os levará para os próprios destinos.
Outro elemento de destaque deste filme é a linguagem muito peculiar, repleta de gírias e expressões quase incompreensíveis e de difícil tradução ("boat drinks", "mammy-rammer", "give it a name", "buckwheats"), os diálogos afiados e crus que tornam a história mais real e às vezes puramente trash. Algumas falas são inesquecíveis ("Eu sou Godzilla, você é o Japão!")
Mas atenção: não se trata apenas de mais um filme de gangsters ou de pura ação. Nas cenas e no desenvolver dos eventos é recorrente o tema da fragilidade da vida, da frustração da mortalidade e a angustia da iminência da morte, o que leva a refletir sobre nossas ações, sobre nossa existência, não apenas na dimensão presente dos fatos cotidianos mas também em perspectiva futura, visando o tempo em que não mais estaremos aqui.
Com muito bom gosto Fleder insere na trilha sonora algumas pérolas de Tom Waits, Johnny Cash, Morphine e Buddy Guy, que muito oportunamente ajudam a descrever algumas cenas de forma mais viva e dinâmica.
Sem mencionar a cena final, tão linda que chega a dar um aperto no peito.
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