terça-feira, 28 de janeiro de 2014

"Coisas para se fazer em Denver quando você está morto"

"Coisas para se fazer em Denver quando você está morto" não obteve muito sucesso na época de seu lançamento em 1995, cúmplice um pouco a "febre" por Tarantino, que com "Pulp fiction" em 1994 havia revolucionado o modo de fazer cinema, e que praticamente monopolizava o interesse de público e crítica naqueles anos.
Contudo, esse filme de Gary Fleder ("Refém do silêncio", "O Juri"), que passou despercebido, merece ser assistido e avaliado positivamente por vários motivos.
Primeiro pela trama.
Jimmy "o Santo" é um empresário interpretado magnificamente por Andy Garcia, talvez no melhor papel da carreira, junto com o de "Internal affairs" ("Justiça cega"), onde divide a tela com Richard Gere.
Os negócios (bastante peculiares) não estão indo bem para Jimmy, embora ele disfarce exibindo um corte de cabelo impecável, esbanje sorrisos e otimismo irresistíveis no rosto e use ternos elegantes. Contudo ele mantém em vida o sonho de poder, um dia, comprar uma lancha e mudar-se para longe de Denver.
Embora hoje ele tente sobreviver honestamente, guarda na gaveta um passado como gangster de todo respeito (o apelido "Santo" vem dele ter frequentado o seminário quando jovem, até perder a vocação e entrar no mundo do crime).
Para salvar sua empresa, endividada até o pescoço, ele se vê obrigado a aceitar executar um "trabalho", na verdade uma "coisinha simples", para o chefão do crime local. Poderia agir sozinho, mas prefere convocar os companheiros dos velhos tempos, que também financeiramente não navegam em boas águas. No meio da operação um imprevisto acontece, a situação precipita e Jimmy, terá que repensar na sua vida e correr atrás do prejuízo. Sentindo-se responsável, tentará salvar o que for possível e consertar os erros cometidos.
O elenco inclui, além da grande atuação de Andy Garcia, que literalmente dá vida a um personagem melancólico, mas ao mesmo tempo provido de bom coração e cheio de alegria (e é impossível não gostar dele!), um notável Christopher Warden, que interpreta o chefão mafioso paraplégico, o tempo todo em uma cadeira de rodas. Um personagem azedo e cínico, amargurado pela vida, que parece ter sido muito má com ele: além da enfermidade, teve que passar pelo falecimento da esposa amada e hoje, o único laço familiar que sobrou-lhe, é o do filho, um garotão seriamente retardado, que vive arrumando-lhe problemas. Da sua mansão,onde ele vive constantemente assistido por uma enfermeira supersexy e cercado pelos seus capangas, ele controla os negócios criminosos.
Gabrielle Anwar (a atriz que dança o tango na famosíssima cena com Al Pacino em "Perfume de mulher") esbanja juventude e sensualidade ao interpretar Dagney, a linda jovem que conquista o coração de Jimmy. A química entre Gabrielle e Andy é muito boa, o casal protagoniza algumas cenas memoráveis.
Todos os personagens são bem construídos, ao ponto de alguns parecerem personagens de quadrinhos, com características peculiares mas não estereotipados. O diretor desenvolve com grande habilidade o psicológico deles.
"Critical" Bill (Treat Williams), um dos parceiros de Jimmy, é um brutamonte violento e asqueroso com sérios distúrbios mentais que treina boxe batendo em cadáveres; Olden (Christopher Lloyd, o "Doc" de "De volta ao futuro", o mais idoso da turma, ganha a vida projetando filmes em um cinema pornô; Lucinda (Fairuza Balk) é uma jovem prostituta que sonha em um dia ter um filho com Jimmy e vive pedindo dinheiro emprestado; Steve Buscemi é perfeito como killer silencioso e frio, a morte personificada, uma figura dificilmente esquecível, mesmo tendo importância marginal no contexto da história.
É muito interessante assistir à luta que os personagens terão que travar para arcarem com as consequências das próprias ações e que os levará para os próprios destinos.
Outro elemento de destaque deste filme é a linguagem muito peculiar, repleta de gírias e expressões quase incompreensíveis e de difícil tradução ("boat drinks", "mammy-rammer", "give it a name", "buckwheats"), os diálogos afiados e crus que tornam a história mais real e às vezes puramente trash. Algumas falas são inesquecíveis ("Eu sou Godzilla, você é o Japão!")
Mas atenção: não se trata apenas de mais um filme de gangsters ou de pura ação. Nas cenas e no desenvolver dos eventos é recorrente o tema da fragilidade da vida, da frustração da mortalidade e a angustia da iminência da morte, o que leva a refletir sobre nossas ações, sobre nossa existência, não apenas na dimensão presente dos fatos cotidianos mas também em perspectiva futura, visando o tempo em que não mais estaremos aqui.
Com muito bom gosto Fleder insere na trilha sonora algumas pérolas de Tom Waits, Johnny Cash, Morphine e Buddy Guy, que muito oportunamente ajudam a descrever algumas cenas de forma mais viva e dinâmica.
Sem mencionar a cena final, tão linda que chega a dar um aperto no peito.