Neste lugar, neste exato momento um espetáculo está prestes a acontecer.
Os privilegiados que irão presenciá-lo não tiveram que pagar por isto.
Duas figuras indistintas, duas silhuetas minutas, sentadas no chão aguardam, os olhares fixos na linha imaginária que separa o céu das colinas.
Imóveis, quase num estado de meditação sobrenatural, esperam.
Uma brisa de vento sopra agradavelmente atrás delas, enrijecendo levemente a pele das pernas e dos braços deixados descobertos pelas camisetas e pelos shorts. Corre em cima dos fios de grama da vegetação, agitando-os e levantando um sutil véu de poeira que se dissolve no ar.
Chegou a hora. Finalmente.
Os olhos, quatro, entreabertos, contemplam o gigante de luz abaixar-se no horizonte e afastar-se lentamente do dia, como um artista que se curva a receber os aplausos do público antes de deixar a cena.
Mas não tem barulho.
É um show silencioso que nada pode interromper. Um momento sagrado em que a natureza celebra seu ciclo, a renovação da vida.
Um fulgor de cores que parecem roubadas da palheta de um maluco pintor futurista inunda aquele retalho de céu de clarões laranja, vermelhos e cor-de rosa que se misturam e se projetam com mil reflexos na superfície lisa do pequeno lago.
É atrás das colinas que o protagonista do nosso dia irá descansar. Amanhã, se tivermos sorte, voltará a brilhar sobre todos nós, sorrindo de lá de cima.
Mais um momento. Com uma última e rápida pincelada de vermelho intenso que deixa o céu sangrando, o sol cumprimenta a platéia e se despede.
Escuridão.
- É lindo. Queria ficar aqui pra sempre – ele diz. Agora é de novo possível quebrar o silêncio.
Ele volta a ter percepção do braço apoiado em seus ombros. Tão leve, tão doce que não o incomoda.
Dois lábios macios que ainda não conhecem o sabor dos beijos descolam um do outro deixando a boca produzir um som suave, tão feminino, uma voz suspensa entre sonho e realidade:
- Quero que me prometa uma coisa.
- O quê?
- Promete?
- Prometo – diz ele curioso.
A voz dela se faz séria. - Quero que tudo isso fique só entre nós dois.
- Como um segredo?
- Como um segredo. O nosso. Eu te prometo que nunca vou contar pra ninguém.
- Tudo bem. Te dou minha palavra. Não vou contar.
- Mais uma coisa – ela não ia esquecer.
- Que mais?
- Promete que você nunca vai dividir este lugar com outra pessoa. Isto pertence só a mim e a você.
- Prometo. Agora vamos que tá escuro...
- Trouxe as lanternas?
- Estão aqui na minha mochila.
- Tá.
No escuro os dedos vagueiam alguns instantes em cima da superfície de plástico da mochila, até conseguirem achar e desatar rapidamente o nó do laço que, fechando-a, guarda seu conteúdo. Mãos se introduzem velozes nela e como por mágica saem segurando dois pequenos objetos de forma cilíndrica. Outra mágica e dois feixes de luz amarela se acendem iluminando fragilmente a noite.
- Tira essa luz dos meus olhos! Seu chato!
Ele ri, direciona o feixe de luz para baixo e entrega a lanterna nas mãos dela.
- Tó. Segura.
Com um gesto rápido põe-se de pé e, oferecendo o braço, a ajuda a levantar-se.
Agora ambos estão de pé, um em frente ao outro. Ela é um pouco mais alta. Nenhum dos dois parece estranhar o lugar ou a escuridão.
- Por aqui...
Dois corpos que a idade ainda não amadureceu enfrentam o caminho de volta até as bicicletas. É um percurso breve mas que a fraca iluminação das lanternas torna perigoso. É possível escorregar ou enfiar um pé em algum desnível do solo.
Felizmente os passos seguem cautelosos as duas linhas luminosas na frente. Lentamente, um atrás do outro, sem pressa.
O bosque vai rareando cada vez mais. Mais um pouco e os dois avistam as bicicletas encostadas no murinho sob a luz artificial de um lampião. Mais alguns passos e estão lá.
Uma nova luz, mais forte que a das lanternas, agora ilumina dois rostos felizes.
De repente a vegetação e a terra se interrompem, deixando lugar ao asfalto da estrada, e com ela o mundo. Aquele mundo que não deve conhecer o segredo deles.
Um gueto dentro do gueto
Há 11 anos