domingo, 14 de agosto de 2011

Sony MDR-XB300 review




Este Sony MDR-XB300 é um fone "over the ear", um daqueles que cobrem completamente o ouvido. Ao peso cerca de 120 gramas, ele é bem confortável com os pads bem macios e altos. Enquanto o fio de "tipo Y" , ou seja que sai de cada pad, é objetivamente curto (1,2m), tem uma caracteristica muito interessante e que garante boa durabilidade: de fato ele é achatado, tornando praticamente impossível aquela que talvez seja a principal causa de estrago de um fone, ou seja o enroscamento do próprio fio com conseguinte perda de contato. Ótimo portanto para quem o utilizar com pcs ou dispositivos portáteis como I-pods, mp3 players ou celulares.
Quem quiser conectar este fone a tv, home theater ou som e acomodar-se confortavelmente no sofá vai precisar comprar uma extensão visto que o cabo só mede 1,2m(nada de proibitivo).
No papel esse fone promete muito: a resposta em frequência declarada pela Sony é 5-22.000 hz, o próprio XB no código do produto significa "Extra Bass", garantindo uma boa reprodução das baixas frequências. Isso graças aos poderosos drivers de 30 mm que quando em ação oferecem um elevado nível de isolamento acústico. Em prática, se você ouvir música em um discreto volume, quem estiver ao seu lado não será incomodado pelo som e também você não perceberá as conversações e os outros barulhos ao seu redor.
Mas vamos testar este fone com vários tipos de música.
Teste realizado com o fone diretamente plugado na saída do pc.
O MDR-XB300 não é o tipo de fone que possa ser considerado "neutro" ou "transparente", visto que enfatiza os graves, fato que por outro lado assegura que o som reproduzido esteja sempre fundamentado em bons alicerces.
Com o jazz, por exemplo "Love for sale" na versão de Cheryl Bentyne é agradabilíssima: o orgão que entra ao uníssono com o contrabaixo logo após as baquetas no chimbal, tem força e profundidade. A linda voz da cantora bem definida, assim como o saxofone. Com certeza esse é um fone que brilha com pequenos combos. Só pra confirmar minha impressão coloco Ray Brown, Monty Alexander e Sam Most em "Blue Monk": aqui os graves estão na minha opinião dominando. O som me parece um pouco "embolado" pelo excesso de graves. De fato, depois de um pequeno ajuste no equalizador, o piano aparece mais brilhante, os graves ainda sustentam e dão vitalidade à musica mas sem sobrepor-se. A flauta emerge bem na mixagem.
O Trio da paz em "Manhã de Carnaval", muito intimamente nos devolve intacto o feeling da bossa nova: o violão bem definido,nunca metálico, as vassourinhas marcando o tempo, o contrabaixo pleno mas não retumbante, a voz etérea. Amei!
Tempo de mudar de estilo: eis aqui os bons e velhos Stones em "Gimme Shelter". A textura das guitarras è boa, a voz do Mick e da Lisa aparecem um pouco distantes, a rítmica ok, mas é preciso lembrar que essa gravação não è das melhores e talvez fosse esse o efeito desejado pelos próprios músicos. Reprodução honesta de qualquer forma.
Vamos passar a uns descendentes dos Stones: "Remedy" dos Black Crowes é simplesmente devastante! Dá vontade de pegar um baixo e sair tocando!!!
Grandes os Blues Brothers em "Gimme some lovin'". Guitarra, baixo, bateria e sopros se amalgam de uma forma perfeita. Aqui também as vozes me parecem um tantinho atrás. Mas talvez seja minha impressão. Me divirto muito ouvindo essa faixa!
"Still of the night" do Whitesnake testemunha mais uma vez que o MDR-XB300 dá realmente um "live" feeling, como se estívessemos ouvindo os músicos tocando ao vivo. A música tem energia, nunca perde força. No começo da parte falada a voz do Coverdale não é muito inteligível, os graves descem sem piedade lá em baixo, embolando um pouco as coisas. Onde outro fone, digamos o Grado SR-60 devolveria a música bem mais polida, o Sony se comporta de forma visceral, com muita energia mas um pouco de dificuldade na separação dos instrumentos.
De qualquer forma... é só rock n' roll, e (graças a Deus!) nós gostamos.
Quero ver como este fone se comporta em um contexto mais "sério". Vittorio Grigolo, tenor italiano da nova geração em "Uma furtiva lacrima", também necessita de um pouco de correção para moderar os graves que de outra forma soariam invadentes demais. A voz è bem reproduzida em todas suas nuances, tem calor e profundidade. Dificil avaliar os instrumentos que nessa ária se limitam a prover um acompanhamento mais que discreto. Coloco então "Che gelida manina" e os arcos me parecem bem dimensionados, os sopros em equilíbrio. A voz do tenor sobe até os agudos sem grandes problemas. Gostei. Preciso avaliar as vozes femininas - penso - e assim chega a vez de Angela Gheorghiu. "O mio babbino caro" ao vivo me parece correta e equilibrada.
Agora algo diferente: The Ondekoza - Legend é um album que sonicamente daria problemas a qualquer caixa acústica ou fone de ouvido, tamanhas as baixas frequências destes tambores japoneses. O som que escuto através deste fone é forte, profundo e definido na faixa "Odaiko", onde uma flauta se livra etérea no ar, quase afugentada pela percussão do tambor. O som é reproduzido com uma realidade impressionante. Muito sugestivo, sem sombra de dúvida.
Hora de testar os graves de verdade com "Angel" do Massive Attack. Essa faixa tem uns sub-graves daqueles que fazem as paredes tremer(algo em torno de 20 hz!). Mais uma vez o som que chega ao meu ouvido confirma a excelência com que este fone reproduz as baixas frequências, com potência e precisão, sem esquecer do resto do espectro sonoro que tambèm se integra perfeitamente.
"The expert" dos suiços Yello é outro exemplo de música eletrônica com alto conteúdo de graves, vozes profundas, teclados e samples gravados maravilhosamente. Aqui também o resultado è excepcional. É claro que se trata de um fone que se dá muito bem com música eletrônica, hip-hop r'n'b e dance.
Continuo o test com um pouco de música erudita. O "Allegro moderato" da Arpeggione Sonata de Rostropovich e Britten é muito agradável atráves desse fone, talvez um pouco "escuro", faltando um pouco de brilho no piano.
O início da Sinfonia n.5 de Beethoven (Carlos Kleiber) é reproduzido com toda sua carga emocional (o destino que bate na porta). A massa orquestral é bem compacta, falta porém na minha opinião um pouco mais de presênça nos agudos (mas pode ser uma caracteristica da gravação da DG realizada entre 1974-76).
Conclusões:
O MDR-XB300 é um fone que excele onde tiver graves marcantes, não importa o tipo de música, garantindo um "punch" e energia incríveis. Blues, rock, pop, jazz, dance e quanto mais tocam com qualidade através deste fone da Sony. Ao contrário, onde os graves são mais sutis e onde a textura musical é mais complexa, as baixas frequências podem ter a tendência a sobrepor-se um pouco ao resto. Não se trata de um fone dos mais analíticos, portanto talvez não muito apropriado para mixagens em estúdio, por outro lado para quem busca o prazer de ouvir música com boa qualidade e conforto em casa ou em qualquer lugar é altamente recomendado.
Ótimo custo-benefício para quem comprar este fone na Europa ou nos EUA (me custou 35 euros na Fnac da Itália), um pouco menos aqui no Brasil, onde pode ser encontrado ainda por um preço acessível (por volta dos 200 reais), com absurdos (um erro com certeza) como no site Americanas onde o MDR-XB300 é vendido por R$ 9.999!!!

sábado, 19 de março de 2011

Joe Henderson - Lush Life (The Music of Billy Strayhorn)


"Lush Life",gravado em 1991, é o primeiro de uma série de 4 cds-tributo a grandes compositores do jazz moderno que Joe Henderson gravou pelo selo Verve,série que deu-lhe certa fama e até um discreto sucesso comercial nos anos 90. Mas o sax tenor de Joe Henderson já estava na ativa há muito tempo: é de 1963 a estréia pela Blue Note ("Page One"), além de estar presente em ótimos discos considerados "clássicos". Pensamos em "The Sidewinder" de Lee Morgan, "The Real McCoy" de McCoy Tyner, "Point Of Departure" de Andrew Hill, "Unity"de Larry Young e "Song For My Father" com o Horace Silver Quintet, apenas para mencionar alguns.
Este álbum é um tributo à música de Billy Strayhorn, íntimo colaborador de Duke Ellington, e com ele autor de páginas inesquecíveis na história do jazz. É de Strayhorn, à título de exemplo, a celebérrima "Take the "A" Train".
O veterano saxofonista se apresenta em forma excelente, acompanhado por músicos da "nova safra", que mostram competência e confiabilidade. O quinteto é completado por um inspirado Wynton Marsalis (trompete), o brilhante pianista Stephen Scott, Christian McBride (contrabaixo) e Gregory Hutchinson (bateria).
Em vez de enfrentar as dez composições de Strayhorn com o quinteto, o líder varia as formações: dueto com contrabaixo, com piano e com bateria, trio com piano e bateria ou piano e contrabaixo, quarteto sem o Wynton Marsalis, três faixas em quinteto e a final "Lush Life" para saxofone solo. Um programa variado que oferece espaço de sobra para todos brilharem e que só pode agradar o ouvinte.
Na inicial "Isfahan", o saxofonista é acompanhado apenas pelo excelente contrabaixo de Christian Mc Bride, 21 anos na época desta gravação, mas já dono de uma técnica e de um timbre formidáveis. "Johnny Come Lately" é um up-tempo com espaço para todos os solistas e com um interplay entre Wynton Marsalis e Joe Henderson que o próprio saxofonista chega a comparar com as colaborações com Kenny Dorham no início dos anos '60.
Mas é difícil escolher uma faixa entre todas, considerado o alto nível de qualidade da música e o entrosamento da banda. Desde a belíssima "Isfahan" por sax e contrabaixo, até uma arrasadora versão de "Take The "A" Train" com Henderson duetando com um incrível Greg Hutchinson na bateria, chegando às faixas com o quinteto completo, este cd tem o som e o sabor de um clássico do começo ao fim.
Para quem ainda não conhece Joe Henderson, "Lush Life" é um ótimo ponto de partida, junto aos outros títulos pela Verve. Quem já aprecia este grande jazzman desde os tempos da Blue Note, Milestone ou Red Records, encontrará agradáveis confirmações do talento e da arte deste grande músico, que infelizmente nos deixou em 2001.

Joshua Redman - Mood Swing



Depois de dois bons discos (a estréia com o quarteto, e “Wish” com Pat Metheny, Charlie Haden e Billy Higgins), Joshua Redman volta com seu quarteto neste “Moodswing”. O acompanham Brad Mehldau (piano), Christian Mc Bride (contrabaixo) e Brian Blade (bateria), que em breve decolarão todos para carreiras solistas prometedoras. Os 70 minutos de música apresentam algumas novidades sobre os dois álbuns precedentes: a primeira é que as onze faixas são originais de autoria do próprio Redman e a segunda é que o mesmo, além do sax tenor, utiliza o soprano. Redman obviamente tem maturado bastante desde os discos anteriores: isso é evidente no timbre reflexivo e aveludado do sax tenor em “Sweet Sorrow”, a faixa inicial, na bossa nova “Alone In The Morning”, no fraseado quase “free” de “Dialogue”, ocasiões em que o saxofonista mostra domínio em cada registro do instrumento, entre outras coisas, com uma voz bastante original, que não mostra influencias coltraneanas, tão comuns nos jovens saxofonistas.O som de Redman parece mais ter raízes nos tenores tradicionais (Gene Ammons, e até Ben Webster).
Onde aparece um pouco de “Trane” é quando Redman passa a utilizar o sax soprano, em “The Oneness Of Two (In Three)”. A banda, soberbamente, acompanha o líder com classe e refinamento: muito bonita a introdução com arco de Christian Mc Bride na faixa “Dialogue”, e no disco inteiro fenomenal a contribuição de Brad Mehldau, um verdadeiro gênio no piano. Notável também a performance de Brian Blade atrás dos tambores.
Um cd que se escuta com prazer e que prova que o jazz dos anos 90 tem deixado registros muito válidos.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Cães de aluguel (Reservoir dogs)



Admito ser um pouco preconceituoso sobre os filmes de Quentin Tarantino.
Antes de "Cães de aluguel", o único título que conhecia deste diretor era "Bastardos inglórios", filme que, se por um lado havia me conquistado pela habilidade de Tarantino de construir tensão (memorável a cena inicial), por outro exibia cenas de violência gratuita de extremo mau gosto, além de uma música que grotescamente tentava clonar os "spaghetti-western" de Sergio Leone musicados por Ennio Morricone, desde sempre uma das grandes paixões de Tarantino.
Minha opinião é que os filmes de Tarantino oscilam entre a obra-prima e o pior do cafona/brega, dependendo dos pontos de vista e dos gostos pessoais de cada um podem agradar ou não. Enfim, ou se AMA ou se ODEIA.
Em "Cães de aluguel" também tem violência, mas ela nunca é desnecessariamente jogada na cara do espectador e sim usada como propelente para dar impulso à trama. O aspecto psicológico dos personagens e como eles enfrentam as situações que aparecem é o que realmente faz a diferença aqui.
Os personagens são bem construídos, os diálogos inteligentes e cortantes; os atores, entre os quais minhas preferências vão para Harvey Keitel e Steve Buscemi, excelentes.
A trama: um chefe criminoso reúne um grupo de profissionais nenhum dos quais se conhece para realizarem juntos um assalto à uma joalheria. Tudo dá errado: a polícia já se encontra no local antes do crime acontecer; é evidente que na quadrilha há um informante.
O legal deste filme é que Tarantino consegue a proeza de fazer com que TODOS os personagens principais morram.
Se você gosta de ação, de violência e diálogos afiados (memorável o exilarante início com os personagens, entre os quais o próprio Tarantino, debatendo sobre "Like a virgin" de Madonna), você vai amar "Cães de aluguel". Caso contrário, não.
Difícil é ficar indiferente.

domingo, 15 de agosto de 2010

SONHAR COM A PRÓPRIA MORTE

É possível sonhar com a própria morte?
Obviamente sim. Não deveria existir nada de estranho nisso, da mesma forma como não deveria ter nada de estranho em sonhar de fazer sexo com uma pessoa amiga. Ou também não amiga, mas apenas vista, mesmo que uma única vez. Faz parte daquele delicado desequilibrio que nos mantém em vida.
O equilibrio leva à morte. Uma vez que o Universo parar sua violenta expansão, começada no início do Tempo, o calor não poderá mais transformar-se em energia, em trabalho. Nenhuma reação, nenhum movimento: só uma concreta e presente situação de eternidade e inalterabilidade, que coincide com a morte.
É possível sonhar com a morte, da mesma forma como uma noite você sonha com um casamento. Éros e Thanatos desde sempre estão em conflito e das feridas deles jorra nossa realidade vivente. Uma ferida deles nos deu a história de Romeu e Julieta. Muitas pequenas feridas nos trazem as incontáveis pequenas paixões de dias quaisquer e de gente qualquer.
Quando estou em silêncio sinto o sopro deste desequilibrio.

Me lembrei de como eu sonhei com minha morte...
Estou sentado no assento posterior de um automóvel, voando no asfalto. As árvores são matéria, o ar é matéria que bate na pele, o asfalto pode dilacerar a carne.
Porções de mundo passam debaixo do meu corpo sentado.
Sair da jaula... Voar, voar, rolar, voar... Os anjos nunca foram felizes... Cair e sentir a pele doer... Cair, sangrar... Sinto o meu corpo, eu sou o meu corpo, meu corpo é tudo que eu tenho. Estou feliz, não tenho medo de precipitar, mas é tudo um espetáculo de uma tal extraordinária lentidão...
(13/08/2007)

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Improvisando amor (Capítulo 1)

1.

Stella provava um prazer imenso em perder-se pelas ruazinhas do centro.
Amava desligar o celular, para que ninguém a incomodasse, e dedicar-se à descoberta dos pontos mais característicos e pitorescos da cidade.
Nutria corpo e alma de pequenos prazeres: escolhia cuidadosamente suas leituras nas grandes livrarias, saboreava as especialidades gastronômicas dos lugares mais disparados do planeta, visitava museus e respirava feliz o ar impregnado do cheiro de terra molhada depois da chuva.
Suas excursões urbanas eram sempre uma fonte inesgotável de emoções, cores, cheiros e sabores que se misturavam e proporcionavamam-lhe a maravilhosa sensação de sentir-se viva.
Guardava um diário onde esporadicamente anotava suas impressões sobre os eventos presenciados: o concerto para piano com músicas de Chopin e Beethoven no auditório da igreja de Santa Cecília, a degustação de vinhos de Borgonha no Emporio Grand Vin ou uma exibição de orquídeas raras no bairro da Liberdade.
Escrevia comentários desordenados, ditados pela emoção, ou simples detalhes que amava reler e que lhe traziam uma nova sensação de prazer. Não mais o dos sentidos, que tinha se consumido imediatamente após a experiência, mas aquele fugaz e devaneador da lembrança, que revestia de novo brilho e de saudade a memória do momento vivido.
Estas sensações eram parte integrante do seu dia e não a abandonavam nunca, não importava onde se encontrasse.

– Os contratos que você pediu estão aqui. Não esqueça de devolve-los ainda hoje, ok? – disse uma voz com tom decidido.
As mãos de Mônica acolheram uma pasta transparente cheia de papéis.
– Obrigada, Stella. Só vou dar uma olhada neles.
– Ah, mais uma coisa. Diga para Carla que a espero no corredor ao meio dia.
– Tá bom. Até mais.
– Tchau.
Mônica levantou-se da cadeira, arrumou a saia puxando-a levemente para baixo com a mão e saiu segurando a pasta debaixo do braço, afastando-se ao som dos saltos que se repercutiam no piso do escritório.
Stella estava de novo sozinha. Sentada, apoiou os cotovelos na mesa, segurando o queixo com as palmas das mãos por alguns instantes, pensando no que viria depois.
Com um movimento do busto e fazendo força com as pernas no chão, fez o encosto da cadeira com rodinhas virar, até dar de cara para a parede que até aquele momento estava atrás dela. Levantou o pescoço para cima. Os olhos um pouco cansados pararam exatamente em cima do relógio.
Quase meio dia.
Um nome exótico ressoava na mente de Stella há algumas horas. O Nakato, um dos mais prestigiosos expoentes da gastronomia japonesa em São Paulo, havia aberto uma filial perto do escritório. O restaurante havia recebido elogios em muitas revistas, inclusa a Veja aberta na página da gastronomia em cima da mesa de Stella, que o descrevia como “primoroso por qualidade dos pratos, ambiente e atendimento”.
Se não tivesse que voltar ao trabalho teria tempo de dar uma volta, ver umas vitrines, dar uma olhada nos títulos dos jornais e das revistas nas bancas. Depois, com toda a calma do mundo, poderia saborear as delícias do Nakato. Mas dispunha apenas de uma hora de intervalo para o almoço, antes de voltar à rotina do escritório. Não era muito, portanto tinha que ser rápida e fazer cada minuto valer.
O plano de Stella era simples. Decidiu realizá-lo com a cumplicidade de algumas colegas: Erika e Carla já haviam-se tornado disponíveis desde as primeiras horas da manhã para acompanhá-la naquela missão. Haviam concordado de encontrar-se ao meio dia exato no corredor em frente aos elevadores, na hall do terceiro andar, o da Setrim, a empresa pela qual todas elas trabalhavam. Meio dia era o horário perfeito. Stella calculava que demorariam não mais que dez minutos para percorrer as quadras que as separavam do restaurante. Possivelmente naquela hora ainda não estaria lotado. Um plano perfeitamente engenhado.
Stella lançou novamente um olhar para a revista na mesa. O restaurante ainda estava ali, apelando aos seus sentidos através das fotos convidativas que exibiam suas coloridas especialidades.
Sentiu as mordidas da fome materializar-se no estômago.
Só mais alguns minutos...
Com um som irritante o telefone em cima da escrivaninha rompeu o silêncio da sala.
Stella sentiu que algum problema estava se aproximando, como quem olha para o céu, vê nuvens escuras e já consegue farejar cheiro de chuva.
Levantou o receiver com um certo nervosismo que fez-lhe tremer a mão. O led vermelho mostrava que se tratava de uma chamada interna.
– Alô?
Reconheceu de imediato a voz da jovem secretária.
– Stella, o Sr. Daniel mandou avisar que haverá uma reunião no escritório dele daqui a cinco minutos.
– Merda! – foi o que imediatamente pensou, mas o pensamento não teve força suficiente para transformar-se em som.
Sabia que não adiantaria reclamar. Pelo menos não com ela.
Pela segunda vez naquela semana teria que renunciar à pausa do almoço. Já na terça o encontro com os clientes da Frelta, uma empresa que cuidava da distribuição dos produtos em algumas redes de supermercados, tinha se esticado além do horário previsto, inviabilizando o almoço. Culpados, sem absolvição, e portanto condenados a queimar para sempre no inferno, os próprios clientes, chegados com uma imperdoável meia hora de atraso.
Naquela ocasião Stella havia ficado no escritório sem interrupção, com o único resultado de ser elogiada pelo chefe por ter conseguido uma boa venda, algo que não bastava a consolá-la.
Agora estava quase na hora de comer, o estômago começava a dar sinais eloqüentes. Não podia renunciar àquele momento de prazer tão cobiçado que já estava se tornando uma necessidade inadiável. Não podia deixar de conhecer o Nakato.
Com um suspiro resignado desligou o telefone. Ficou um segundo como perdida, o olhar fixo contra a parede, sem saber o que fazer. Depois com mão firme e rápida apanhou de novo o receiver e compôs um número.
– Daniel?
– Sim.
– Eu tenho um compromisso para o almoço. Essa reunião é mesmo necessária ou é mais uma perda de tempo?
Nada havia filtrado seu pensamento ao tornar-se palavras. Sabia como chegar direto ao que interessava, sem titubear. Mesmo que estivesse dirigindo–se a um superior, o tom da sua voz não concedia descontos.
– Stella. Preciso de um relatório detalhado sobre os nossos clientes da Frelta. Os contratos estão todos contigo, portanto sua presença é indispensável. Se quiser, podemos almoçar juntos amanhã... – ele jogou isso na inocente tentativa de consertar o dano que tinha acabado de provocar.
A voz de Daniel era uma das poucas coisas que tinha o poder de trazer Stella bruscamente de volta à embaraçosa imperfeição da realidade. E irritá-la, fazendo-a sentir ainda pior.
Um homem como Daniel poderia viver até duzentos anos de idade e nunca conseguiria entender nada da psicologia feminina.
– Obrigada, deixa pra lá – ela até tentou imaginar como seria ter que gastar seu precioso break conversando sobre clientes e contratos com ele e a idéia pareceu-lhe ainda mais aterrorizante, se é que isso era possível.
A reunião. Algo sobre a inutilidade da qual estava tão convencida ao ponto de apostar um mês de salário. Mas o chefe não estava convidando, estava "gentilmente" ordenando.
– É isso que se ganha por ser supervisora do setor de vendas de uma multinacional. Eu mereço isso – pensou.
Em poucos instantes havia visto seu castelo de areia construído com tanto cuidado desabar sob os pés de um imbecil.
Não tinha saída. Freou seus desejos bruscamente como quem dirige um carro em alta velocidade e percebe que, estrada adiante o farol está fechado.
– Tá bom, te vejo no teu escritório – acrescentou mecanicamente e sem muito sentimento.
Tinham acabado de violar sua vontade e matado seu desejo. Sentiu-se agredida com violência.
Num segundo cessou de fantasiar sobre a possível decoração do restaurante, sobre quais tipos de porcelanas, lisas ou ásperas, à segunda da comida servida teria encontrado, sobre as variedades de sushi e sashimi, cada um com seu nome característico, que teria degustado naquele local. Estes e muitos outros detalhes foram removidos com a mesma rapidez com a qual se apaga um arquivo de um disco rígido num computador para criar espaço.
Tentou afastar o pensamento.
– Pelo menos não terei que agüentar as intermináveis reclamações de Carla – pensou sorrindo. A amiga estava perenemente no pé de guerra contra os superiores que, queixava-se ela, a constringiam a horários desumanos e tarefas impossíveis por um salário de fome. Tinha uma boa dose de verdade nisso.
Apanhou a pasta de couro preta com todos os fascículos dos clientes, a inseparável bolsa que continha agenda e celular, enfiou uma mão dentro dela e a retirou segurando um kit de maquiagem que abriu-se rapidamente revelando um pequeno espelho. Em poucos instantes sua face apareceu na pequena superfície de vidro do estojo em plástico.
Os cabelos castanho escuro desciam retos em forma de franja na testa e atrás corriam soltos passando abundantemente da altura dos ombros, incrivelmente lisos. Dois olhos escuros e penetrantes que brilhavam de um olhar doce e ao mesmo tempo resolvido deixavam transparecer curiosidade e inteligência. O nariz regular e reto e a boca grande com lábios finíssimos inseriam-se harmoniosamente no rosto magro, completando a imagem de um rosto que poderia ter sido pintado por um artista em estado de graça.
Arrumou rapidamente a franja com um gesto da mão, pensou por um segundo se era o caso de reforçar o traço de batom nos lábios, já velho de algumas horas. Não o considerou necessário. Afinal era só uma reunião de trabalho.
Repôs o espelho na bolsa, suspirou, levantou-se cuidando bem de arrumar a cadeira perto da escrivaninha e dirigiu-se à porta. Por um momento teve a sensação de que o mundo em sua volta de repente estivesse tornando-se escuro. Parou. Sentiu esta escuridão cair em cima dela e envolvê-la como uma manta negra espessa e sufocante.
Suspirou novamente, fechando os olhos como se não enxergar aquelas paredes, aquele escritório sem vida bastasse para transportá-la num outro lugar, onde as coisas tinham mais cor e luz. Quando os abriu percebeu que aquele lugar existia apenas em sua imaginação. Havia só o escritório.
Sentiu a vontade de gritar subir do fundo do estômago. Um grito que ansiava sair, ecoar naquele ar viciado, retumbar nos corredores cheios de marionetes e zumbis e mais além daquele escritório, fora daquele prédio, alcançar todos os espíritos livres, sacudir e libertar todas as vítimas de uma existência enfadonha sacrificada em prol do dever, imolada ao deus do trabalho. De instinto levou uma mão á boca, como para impedir que seu descontentamento se manifestasse sonoramente e reprimiu num instante a legião de demônios enfurecida que se agitava no estômago. Como já havia feito uma, duas, muitas vezes.
Aviou-se. Acelerou o passo, abriu a porta e encontrou o corredor que ressoava barulhento das conversas dos colegas. Com um rápido gesto da mão fechou a porta atrás dela e com a mente afastou no mesmo momento mil pensamentos negativos, mil nuvens negras do seu céu. Sentiu que estava voltando o sereno.
Deglutiu. O grito dissolveu-se silenciosamente nela, rápido como tinha surgido. A quiete voltou a reinar dentro.
Em breve a reunião começaria. E ela estaria lá.
Lançou uma última olhada à sua volta, encontrando os rostos familiares dos colegas de trabalho. Nem o esboço de um sorriso.
Parou para tomar um copo de água do bebedouro no corredor. Tomou coragem e misturou-se com aquela porção de humanidade que entrava no escritório de Daniel.
Não era aquele o lugar e o momento para deixar sua alma sangrar.

domingo, 13 de junho de 2010

INESQUECÍVEL

"Em um minuto se vive uma vida", é o que Al Pacino diz em "Perfume de mulher", na celebérrima cena do tango.
É também verdade que "em uma vida se vivem tantos minutos". Alguns inesquecíveis.
São quase duas horas da madrugada e estou aqui, digitando e pensando em quão sortudo e privilegiado eu sou, na minha condição de mero ser humano, por experimentar tamanhas emoções e poder vivenciar momentos assim.
"Laphroaig" é o nome de uma área na Escócia, no sul da costa da ilha de Islay e também o nome de um uísque ali produzido, por ser um pouco mais exatos, um dos mais saborosos uísques que existem. Quem já experimentou com certeza concordará comigo; quem não conhece pode esquecer os vários Johnnie Walkers e Ballantines da vida:não servem como referência.
Quero frisar que nunca gostei de uísque. Sou apaixonado por vinhos e tomo cerveja (muito ocasionalmente) com os amigos, curto cervejas especiais (também muito raramente) e só.
Tudo aconteceu um par de anos atrás, quando em visita à Itália,convidado pra jantar na casa de um daqueles poucos AMIGOS (o maiúsculo aqui é obrigatório) que a vida nos reserva, foi introduzido a este "rapazinho" escocês de 10 anos de idade.E foi um daqueles amores que a gente carrega para a vida inteira.
Agora, dois anos e alguma coisa mais tarde estou aqui, refletindo sobre mais uma noite maravilhosa, com pessoas queridíssimas, em que a boa música, o álcool e a boa conversa protagonizaram as tardas horas de uma fria noite de inverno paulistana.
O Laphroaig foi apenas o toque final de uma noite regada a álcool e repleta de prazer. Não aquele sensual e carnal do sexo (ao qual também me concedo com frequência, graças à Deus!), mas o prazer do espírito, junção de carne e intelecto, corpo e alma.
O prazer de conversar e aprender ouvindo Chopin, Mussorsgky e Debussy com um músico da Sinfônica de Sâo Paulo e com o pai da mulher que amo, mulher que há um bom tempo divide sua vida comigo. Ótima companhia.
Me encontro num estado de euforia e excitação (devido ao álcool?). Percebo que agora como nunca antes consigo compreender perfeitamente o slogan que se encontra no site do Laphroaig:- "Dizem que nós moradores da ilha demoramos um bom tempo para fazer novos amigos, mas quando o fazemos é para a vida inteira".
Só posso concordar.